Conhecidos integrantes de facções saíram detrás das grades em pouco mais de um ano, por questões humanitárias ou medidas alternativas à prisão. Desses, sete não foram mais localizados pelas autoridades e o receio é de que, foragidos, alimentem a recente alta dos homicídios
HUMBERTO TREZZI LUCAS ABATI GZH
A recente onda de homicídios no Rio Grande do Sul — foram pelo menos cinco chacinas em um mês — acendeu um alerta entre policiais. E um dos fatores que podem contribuir para aumentar ainda mais o número de assassinatos, acreditam as autoridades, é que pelo menos 15 integrantes de facções criminosas saíram detrás das grades em pouco mais de um ano, beneficiados por razões humanitárias e/ou medidas alternativas à prisão.
Desses, sete estão foragidos, conforme levantamento feito pelo Grupo de Investigação da RBS (GDI). É o caso de Tiago Benhur Flores Pereira, que idealizou um túnel para fuga de dezenas de apenados do Presídio Central de Porto Alegre e que tem 153 anos de pena por cumprir.
O GDI pesquisou dois bancos de dados federais e ouviu policiais e membros do Ministério Público, envolvidos em investigações que propiciem o retorno dos fugitivos a penitenciárias. Na última semana, a Brigada Militar capturou 62 foragidos. Já a Polícia Civil realizou 28 capturas de pessoas condenadas por crimes como homicídios e latrocínios (roubos com morte).
— Infelizmente, por conta de benefícios indevidos, muitas lideranças têm sido postas na rua mediante uso de tornozeleira ou prisão domiciliar. O grande número de rupturas do dispositivo e fugas deixam evidente o desacerto da medida. E essa conta quem paga é a polícia e a Segurança Pública, que têm de dispender energia e dinheiro público pra recapturar esses criminosos — reclama a diretora do Departamento Estadual de Investigações Criminais (Deic), delegada Vanessa Pitrez, cujas atribuições incluem procurar foragidos.
É dominante a sensação de que progressões de regime concedidas a chefes ou gerentes do crime acabam facilitando acertos de contas no submundo, como ocorreu nas cinco chacinas ocorridas em um mês no Estado. Só investigações detalhadas poderão comprovar se o recente aumento de homicídios tem relação com a volta desses quadrilheiros às ruas.
Um exemplo é o de Liomar Antônio da Silva, condenado a 84 anos de prisão, líder de facção de Canoas e procurado pela Justiça gaúcha. Ele acabou morto em agosto no Paraguai, onde estava escondido, por seus inimigos no crime. O caso ilustra como as desavenças são resolvidas após a fuga de criminosos de alto potencial ofensivo.
A promotora de Justiça Lucia Callegari, que atua em júris de homicídio, critica as liberações de chefes de quadrilha com motivações humanitárias.
— A própria Susepe (Superintendência dos Serviços Penitenciários, atual Polícia Penal) tem estrutura de hospitais conveniados, de escolta e na própria casa prisional, para atendimento. Tem atendimento médico e essas solturas humanitárias certamente têm papel nessas mortes que a gente está presenciando, nas chacinas no Interior. Estamos incendiando locais que não tinham problema — opina.
A Polícia Penal informa que, somente na Penitenciária de Alta Segurança de Charqueadas (Pasc), responsável por encarcerar os presos mais perigosos do Rio Grande do Sul, 11 detentos saíram em prisão domiciliar humanitária desde o final de 2022. A Polícia Penal aponta que a maioria por alegar problemas de hérnia de disco e lombalgia.
Procurado, o secretário estadual da Segurança Pública, Sandro Caron, não quis fazer comentários.
Já a titular da 1ª Vara de Execuções Criminais (VEC), responsável por avaliar progressão de regime e pedidos de prisão domiciliar, juíza Sonáli da Cruz Zluhan, defende que as medidas são adotadas pela insuficiência do sistema prisional.
— A gente recorre à prisão domiciliar humanitária, em caso de doença, depois que a gente tentou de tudo dentro do presídio. Não é a primeira opção para nenhum magistrado. Ele (preso) comprova que está doente e a gente pede o tratamento. Aí vem o laudo dizendo que precisa de especialista, e especialista não tem em nenhum presídio. A gente pede que o preso seja levado para consulta mediante escolta e, não são poucas vezes, a Susepe (Polícia Penal) não leva, e eles perdem a consulta — explica a magistrada.
A juíza assegura que as decisões são baseadas na Lei de Execuções Penais, voltada a direitos e deveres dos presos. Segundo a magistrada, se a lei fosse cumprida à risca, poucos presídios estariam abertos.
— Eu descumpro essa lei diariamente, porque cada presídio novo que é construído não está nem minimamente dentro das regras da execução penal — cita Sonáli.
A Polícia Penal divulgou nota em que afirma “que não procede a falta de atendimento médico para os apenados (as) seja dentro das unidades prisionais ou fora delas”. (leia a íntegra ao final da matéria)
A seguir, alguns presos que receberam permissão para sair dos presídios e a situação atual deles:
Foragidos
Tiago Benhur Flores Pereira (facção Os Manos)
É um dos expoentes do crime no Rio Grande do Sul. Foi condenado, entre outros motivos, pela construção de um túnel que se destinaria à fuga de centenas de detentos do Presídio Central de Porto Alegre. A pena a cumprir soma 153 anos. Foi solto em 22 de julho, mediante prisão domiciliar humanitária, para realizar cirurgia. Fugiu três dias depois. Tem dois mandados de prisão decretados.
A juíza Sonáli da Cruz justifica que este preso foi solto por não receber tratamento pós-cirúrgico na cadeia.
— Ele foi para o Hospital Mãe de Deus, ficou escoltado lá depois da cirurgia, voltou para o presídio e não foi levado para nenhum outro atendimento. A cirurgia dele era de coluna e ele teve um problema sério, regrediu porque não foi levado para nenhum lugar. Tem vários laudos no processo dizendo que ele precisava de nova cirurgia, nas mesmas circunstâncias de antes — diz.
Letier Ademir Silva Lopes (facção Bala na Cara)
Ao longo da última década, foi apontado pela polícia como articulador de pelo menos 27 homicídios consumados ou tentados, a maioria em Canoas e Cachoeirinha. Ganhou progressão de regime antecipado, do regime fechado para um instituto penal (semiaberto, em Charqueadas), em 10 de setembro. Fugiu dois dias depois. Está com prisão decretada, como foragido.
Tiago Soares da Silva (facção Bala na Cara)
Conhecido como Pequeno, é apontado como líder dessa facção em Cachoeirinha e Gravataí. Tem pouco mais de um ano de pena por cumprir, mas é investigado por envolvimento em 11 homicídios (com prisão preventiva decretada) e também assalto a uma empresa de valores. Recebeu progressão de regime antecipada em 24 de março e foi colocado no Banco de Procurados em 19 de setembro. Está foragido.
Alexandre Moraes da Silveira (facção Os Manos)
Conhecido como “Beiço”, é apontado como um dos maiores distribuidores de cocaína e crack nas regiões do Vale do Sinos e centro-sul do Estado. Tem 25 anos de prisão por cumprir e possui quatro mandados de prisão em aberto (por tráfico, lavagem de dinheiro e organização criminosa). Ganhou progressão de regime com uso de tornozeleira em 1º de julho de 2016 e fugiu dia 30 de julho de 2024. Está incluído como foragido na Difusão Vermelha da Interpol, por suspeita de que tenha fugido para o Exterior.
Fabio Rosa Carvalho (facção Os Manos)
Conhecido como “Fábio Noia”, já cumpriu pena por tráfico de drogas, roubo a banco e homicídios. Responde a processos por lavagem de dinheiro do tráfico. Recebeu permissão para uso de tornozeleira em outubro de 2022. Foi considerado foragido em fevereiro de 2023.
Rafael Bianchi Batista (facção Bala na Cara)
Conhecido como Rafinha, traficante de drogas em Cachoeirinha, já cumpriu pena por homicídio e esteve escondido na fronteira entre Brasil e Paraguai. Ganhou prisão domiciliar em 4 de agosto de 2024 e fugiu. Teve mandado de prisão decretada, como foragido, em 23 de setembro.
Willian Ramos Silveira (facção Bala na Cara)
Responde a processo por tráfico de drogas e posse ilegal de arma de fogo, junto de Rafael Bianchi Batista. Tem cinco anos e seis meses de prisão por cumprir. Recebeu direito a tornozeleira em 5 de agosto e está foragido desde 19 de setembro.
Recapturados após fuga
Rodrigo Afonso Bandeira dos Santos (facção Os Manos)
Conhecido como “Rodrigo das Correntes”, o porto-alegrense tem antecedentes por tráfico, homicídio e porte ilegal de arma de fogo. É considerado um dos principais controladores de pontos de prostituição na Capital e distribuidor de drogas em Eldorado do Sul. Tem 25 anos e 10 meses de prisão por cumprir. Voltou à prisão recentemente, por descumprir decisão judicial.
Christian Vieira da Silva (facção Bala na Cara)
Conhecido como DVD, é apontado como matador da facção. Tem 33 anos e três meses de pena por cumprir, por homicídios. Recebeu prisão humanitária domiciliar por doença, em 26 de julho. Fugiu em 9 de agosto e foi recapturado.
Luís Natanael Nunes Paz (facção Os Manos)
Condenado a 33 anos de prisão por homicídios, ganhou direito a prisão domiciliar humanitária em setembro de 2023, para tratamento de hérnia e exames de tumores. Foi preso em agosto de 2024, por violar as condições impostas pela Justiça. Está encarcerado na Penitenciária de Canoas.
Monitorados para evitar fuga
Pelo menos outros cinco criminosos, cujas penas somadas alcançam mais de 75 anos de prisão, são monitorados constantemente pelas autoridades. Ligados às facções Os Manos, Bala na Cara e Os Abertos, eles receberam benefícios que os tiraram detrás das grades. Alguns estão no regime semiaberto, outros em prisão domiciliar humanitária. A reportagem não publica os nomes deles porque não fugiram.
O que diz a Polícia Penal
“A Polícia Penal informa que não procede a falta de atendimento médico para os apenados (as) seja dentro das unidades prisionais ou fora delas, por conta da falta de equipes médicas ou de escoltas. As pessoas privadas de liberdade no Rio Grande do Sul recebem atendimento médico dentro das próprias casas prisionais e também são realizadas inúmeras escoltas para consultas e atendimentos hospitalares diariamente, inclusive de apenados considerados de alta periculosidade.
Referente às prisões humanitárias abordadas, percebe-se tal situação principalmente em Porto Alegre e Charqueadas e na maioria dos casos se tratam de patologias como hérnias ou lombalgias.
Entretanto, cabe reforçar mais uma vez, que sempre se garante atendimento médico nas unidades prisionais pelas próprias equipes de saúde ou permissão do acesso de médicos particulares para atendimento no local. Além da efetivação de escoltas para consultas em ambientes externos aos prisionais.
Existem atualmente 55 Unidades Básicas de Saúde Prisionais nos estabelecimentos do Estado. Ao todo, são 63 equipes de saúde que contam com médico clínico geral, psiquiatra, enfermeiro, técnico de enfermagem, dentista, auxiliar de dentista, psicóloga e assistente social. Nas unidades sem a presença de UBS, há atendimento de saúde interno.
Nos demais casos, os presos acessam, diretamente, a rede de saúde pública, sempre mediante escolta dos policiais penais. Somente em 2024, foram efetivadas 2.968 consultas médicas fora das unidades prisionais do Estado.”